sexta-feira, abril 13, 2018

Para descobrir um filme grego (1/2)

É verdade: há cinema grego e, de vez em quando, surge no nosso país — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Abril), com o título 'Do cinema grego chega um perturbante conto moral'.

Cinema grego? Digamos, para simplificar, que o cinema grego existe. E que, com tímida regularidade, vamos conhecendo alguns dos seus títulos que, por uma ou outra razão, conseguiram alguma evidência nos circuitos internacionais. É o caso do estranho e envolvente Não Me Ames, realizado por Alexandros Aravanas, também autor do argumento (com a colaboração de Kostas Peroulis).
Avranas é, precisamente, um dos nomes gregos com especial visibilidade em anos recentes, já que a sua longa-metragem Miss Violence lhe valeu, em 2013, um Leão de Prata de melhor realização no Festival de Veneza. Foi, aliás, a distinção mais importante obtida pela cinematografia grega depois do prémio “Un Certain Regard”, da edição de 2009 de Cannes, ganho por Canino, de Yorgis Lanthimos.
Para além das diferenças das suas histórias, parece haver entre estes filmes um discreto, mas intenso, ponto comum: em todos eles deparamos com universos familiares que se definem, não tanto pelas singularidades afectivas, antes pelo modo como as suas relações internas se organizam através das mais elaboradas formas de ocultação em relação a qualquer exterior.
Em Miss Violence, Avranas encenava uma família cujas personagens femininas viviam sob o jugo de um poder masculino que se exercia através de insidiosas formas de agressão física e psicológica. Agora, em Não Me Ames, somos confrontados com um casal que programa a chegada do primeiro filho, para tal estabelecendo um acordo com uma jovem para funcionar como barriga de aluguer. Dir-se-ia uma gélida partilha de funções, de algum modo consolidada pelo facto de estar previsto que a jovem vá habitar com o casal durante o tempo da gravidez: tudo depende de uma série de detalhes analisados e geridos de forma absolutamente impessoal (incluindo a metódica avaliação do dinheiro envolvido); ao mesmo tempo, os três parecem aceitar sem problema as regras definidas.

Masculino/feminino

Em boa verdade, quase nada é o que parece. Mesmo evitando revelar ao leitor as insólitas viragens da narrativa, vale a pena sublinhar que os primeiros sinais de estranheza provêm da frieza geométrica da casa que é o cenário principal. Segundo as suas notas biográficas, antes de se dedicar ao cinema, Avranas estudou escultura — e não será abusivo reconhecer que tal formação se reflecte no olhar clínico que ele deposita sobre os espaços, seus objectos e volumes.
Não Me Ames acaba por ser um perturbante conto moral sobre as relações masculino/feminino num contexto em que parece não haver lugar para qualquer solução de genuína cumplicidade entre os humanos. Tudo isso passa, como é óbvio, pela elaborada tensão do trabalho dos actores, com inevitável destaque para a intérprete da mulher do casal, Eleni Roussinou, aliás também figura central em Miss Violence. Mas há ainda essa capacidade de Avranas dar a ver os lugares privados — desde a neutralidade decorativa dos quartos da casa até ao equilíbrio geométrico do jardim com piscina — como zonas de um assombramento que irá contaminar tudo e todos.
Na sua radical contenção (a cena final é de um minimalismo exemplar), Não Me Ames consegue a proeza de conciliar o retrato social com a parábola existencial. E tanto mais quanto as especificidades do contexto grego adquirem metódica ressonância universal. Será essa, afinal, uma marca possível de um cinema que se quer atento às raízes nacionais sem descurar os olhares dos que estão para além das suas fronteiras.